Resenha: Ubik, de Philip K. Dick
Fazia tempo que não saía resenha nova, mas é porque também fazia tempo que eu não lia livro físico... de ficção. Como vocês sabem, aqui eu só resenho gente morta, ou famosa demais para me notar... e encrencar.
Ficção científica nem é muito a minha praia (distopias à parte), mas depois de várias indicações de um amigo, resolvi conhecer um pouco de Philip K. Dick, aparentemente seu autor preferido. Já foi uma dificuldade achar ele para ler: na biblioteca pública municipal tinha um total de zero livros desse autor. Estranho, porque as obras dele serviram de base para filmes famosos, como Blade Runner, ou séries, como O Homem do Castelo Alto. Não foi o caso do livro escolhido para a resenha de hoje: apesar de ele ter até poster, como se pode ver acima, o diretor que tinha planejado a adaptação do livro largou o trabalho.
Eu não poderia culpá-lo. Vocês logo verão por quê.
Bem, no fim das contas achei algumas obras do Philip K. Dick, e decidi começar a ler por "Ubik", que tinha sido o mais indicado.
A capa abaixo é da edição linda da Editora Aleph, especializada em Ficção Científica.
O livro sem dúvida prende a atenção. Eu o devorei em três, quatro dias, e fazia bastante tempo que não lia um livro tão rápido assim (bons velhos tempos da adolescência!). Para que gosta de plot twists — ou, em bom português, reviravoltas — Ubik é um prato cheio. Você chega a ficar tonto com a rapidez com que as situações e as explicações para o que está acontecendo se alteram.
Na verdade, é tanta mudança que você fica na dúvida se o próprio autor sabia a explicação... ou se ele tinha um enredo. A impressão é que ele foi escrevendo ao sabor da maré (quem nunca). Isso deixa o livro um tanto confuso — no caso de Ubik, pelo menos, cuja sinopse no Skoob "eu nem entendi um pouco direito" — mas não rouba o sabor da história, que é, de fato, curiosa e eletrizante.
Mas vamos a ela.
A história se passa no futuro, em 1992. Sim, estranhíssimo considerar 1992 futuro, mas se levarmos em conta que o livro foi escrito em 1969... Enfim, a sociedade não é tão diferente do que estamos acostumados como naquelas distopias políticas, como 1984 ou Admirável Mundo Novo. Na verdade, do pouco que se pode depreender do livro, houve poucas mudanças na configuração sócio-política e econômica do mundo: os únicos países mencionados são a Confederação Americana, que seria uma união dos três países da América do Norte, e a Suíça. Além disso, sabe-se que o ser humano tem colônias na Lua e em mais alguns astros. Economicamente, eles vivem em um capitalismo bem típico, inclusive tendo que pagar por mais coisas do que hoje em dia acontece: os personagens têm casas/apartamentos inteligentes, cujos equipamentos todos funcionam na base das moedinhas. É assim que Joe Chip, o mais próximo de um protagonista que o livro tem, quase fica preso na própria casa por não ter dinheiro para pagar a porta para que abra. Mas isso são minúcias.
O elemento diferencial que essa nova sociedade contém é, basicamente, o modo como ela lida com a morte... e umas potencialidades paranormais que os seres humanos desenvolveram ou descobriram, e que colocam em risco a segurança da ignorância.
Logo de início, somos confrontados com a notícia de que o mais poderoso telepata do sistema solar tinha desaparecido dos radares da empresa que o vigiava, a Runciter e Associados. Além de invasores dos pensamentos alheios, a sociedade também conta com uma espécie de videntes (precogs), além de outros humanos cujos dons paranormais são, por vezes, utilizados para obter dinheiro com chantagens, extorquir segredos e etc. Para combatê-los, existem empresas como a Runciter e Associados, chamadas "organizações de prudência", que usam pessoas que têm "Antitalentos" para neutralizar os talentos paranormais dos "Psi", as pessoas que têm esses dons. A um preço, claro.
Essas empresas têm uma espécie de sindicato e monitoram a localização de todos os Psi conhecidos, porque as pessoas comuns não sabem encontrá-los; a própria organização de prudência os localiza e oferece seus serviços neutralizadores para as vítimas dos Psi. Bem, por isso que é importante o fato do principal telepata ter desaparecido dos seus sistemas de monitoramento: o dono da agência fica pensando se o líder dos Psi, que parece ser seu arqui-inimigo, não estaria tramando alguma coisa. Para decidir como lidar com essa situação, ele vai consultar sua esposa.
Sua esposa morta, que, todavia, continua a gerenciar agência em sociedade com o marido.
É nesse momento em que somos colocados com a forma de tratar a morte e os mortos, que é, talvez, o principal tema do livro. No universo de Ubik, os mortos não são enterrados - não de imediato, pelo menos. Eles colocam as pessoas, logo após a morte, em uma espécie de criogenia, e as conservam em "moratórios", onde seus parentes podem vir visitá-los e se comunicar com eles. Não por meio de uma sessão espírita ou coisa parecida: a criogenia conserva... um pouco de vida nos mortos. Eles ficam num estágio intermediário chamado de meia-vida, até (segundo as crenças da sociedade de então, baseadas no livro tibetano dos mortos) supostamente reencarnarem. Os cuidados com o morto podem prolongar essa meia-vida - e sim, esses cuidados também custam dinheiro. Enfim, enquanto eles estão conservados no moratório, seus parentes podem "reativá-los" para falar com eles por uma espécie de telefone; contam as novidades e os defuntos até conseguem raciocinar sobre questões externas.
Runciter vai a um desses lugares estranhos e consulta sua mulher. Enquanto fala com ela, porém, outro espírito ou alma ou vida ou fluxo de sei lá o quê interrompe a conversa, bloqueando a comunicação da mulher, por ser mais forte e jovem. Essa circunstância já nos oferece uma pista que a "vida" em meia-vida não é assim tão plácida.
Enquanto Runciter está lidando com esse problema, somos apresentados ao co-protagonista da história, Joe Chip, o principal funcionário da agência, cuja função é monitorar e testar talentos Psi e os Antitalentos. Joe tem uma personalidade interessante: ele é pessimista, fracassado e nostálgico. Parece que ele não está confortável naquela sociedade, mesmo tendo nascido nela.
Enfim, o enredo do Joe começa com uma moça bonita e esquisita que um olheiro da companhia Runciter leva para ele avaliar. O poder dessa moça é modificar os acontecimentos a partir de um ponto por ela escolhido no passado. Ela acaba sendo contratada pela Runciter e Associados, embora o considerem perigosa, por não terem noção de como controlar o dom dela, e interfere bastante no rumo dos acontecimentos, inclusive se casando com o Joe Chip em algumas das realidades modificadas.
O dom dessa moça e o problema de saber onde estão os telepatas e precogs que continuam sumindo do mapa levam uma equipe de elite da Runciter e Associados - incluindo Joe Chip e o próprio Runciter, um velho muito velho vivendo com metade dos órgãos artificiais - a uma estação no espaço, para investigar um suposto caso de elevada atividade Psi.
Esse caso se revela uma armadilha e, após a explosão de uma bomba, começa uma segunda fase do livro, a fase mais louca, em que duas realidades/explicações possíveis convivem alternadamente: Runciter morreu e todos os outros da equipe ficaram vivos, ou todos morreram, e estão em sacos, em meia-vida no mesmo moratório que a esposa de Runciter, que foi o único a sobreviver e tenta se comunicar com eles por meio de sinais.
Qualquer que seja a interpretação correta, o fato é que a realidade em que Joe Chip está preso agora é a mais esquisita. As coisas começam a regredir e... apodrecer... algo parece estar mexendo com o tempo, fazendo que os objetos recuem para fases tecnológicas anteriores e as pessoas comecem a envelhecer subitamente, como se tivessem vivido muitas dezenas de anos...
Essa fase do livro, em que pese eletrizante, é confusa para uma explicação em dois parágrafos. Precisa ser apreciada e explorada - degustada, talvez - numa narrativa direta. Quem tiver paciência, vou reproduzir um trecho aqui em que o personagem regrediu até 1939, e que me impressionou bastante, pois o autor falou de assuntos que, na época que o livro foi lançado, auge da Guerra Fria, certamente eram tabu, como o antissemitismo norte-americano e sua simpatia para com Hitler, desde que ele liquidasse o comunismo. O autor ressalta bem o conceito de incompatibilidade geracional ideológica. Acabei de inventar isso, sim, mas resume bem o que ele quis dizer: certas formas de pensar são incompatíveis com a evolução histórica.
Aqui vai o trecho. Se estiver com preguiça, pule direto para após o texto em itálico. Mas eu recomendo ler tudo.
***
— E a Rússia? — o senhor Bliss estava perguntando — Na guerra, quero dizer. Destruímos aqueles vermelhos? Consegue ver tão longe?
Joe disse:
— A Rússia vai lutar do mesmo lado dos Estados Unidos — E todos os outros objetos, entidades e artefatos deste mundo ele ponderou. A medicina será um grande obstáculo. Deixa eu ver... Neste exato momento, eles deveriam estar usando medicamentos à base de sulfa. A coisa vai ficar séria para nós quando ficarmos doentes. E... a parte dentária também não será muito divertida. Ainda estão trabalhando com brocas quentes e novocaína. Pastas de dente com fluoreto ainda nem existem. Isso, só vinte anos no futuro.
— Do nosso lado? — Bliss esbravejou — Os comunistas? Impossível. Eles têm aquele pacto com os nazistas.
— A Alemanha vai violar esse pacto — disse Joe — Hitler vai atacar a União Soviética em junho de 1941.
— E destruí-la, espero.
Retirado de surpresa das suas próprias preocupações, Joe se virou para olhar com atenção para o senhor Bliss, dirigindo o seu Willys-Knight de nove anos.
Bliss disse:
— Os comunistas são a verdadeira ameaça, não os alemães. O tratamento dado aos judeus, por exemplo. Sabe quem ganha muito com isso? Os judeus neste país, muitos deles não são cidadãos, mas refugiados vivendo à custa de benefícios públicos. Acho que os nazistas certamente têm sido um pouco radicais em algumas das coisas que têm feito aos judeus, mas alguma coisa, talvez não tão cruel quanto esses campos de concentração, tinha de ser feita a respeito. Temos um problema semelhante aqui nos Estados Unidos, tanto com os judeus quanto com os crioulos. Vamos acabar tendo que fazer algo a respeito de ambos.
— Na verdade, nunca cheguei a ouvir o termo "crioulos" sendo usado — disse Joe e, de uma hora para outra, viu-se avaliando aquela época de modo um pouco diferente. Tinha me esquecido disso, percebeu.
— Lindbergh é que está certo quanto à Alemanha — disse Bliss — Já ouviu ele falando? Não me refiro ao modo como os jornais transcrevem, mas, na verdade... — Ele reduziu a velocidade do carro até parar diante de um sinal de pare em estilo de semáforo — O senador Borah e o senhor Nye, por exemplo. Se não fosse por eles, Roosevelt estaria vendendo munições à Inglaterra e colocando-nos numa guerra que não é nossa. É irritante o interesse de Roosevelt em revogar a cláusula do embargo às armas no projeto da lei de neutralidade. Ele quer que a gente entre na guerra. O povo americano não vai apoiá-lo. O povo americano não está interessado em lutar a guerra da Inglaterra, ou a guerra de qualquer outro país — O sinal ressoou, e um semáforo verde girou para fora. Bliss engatou a primeira marcha e o Willys-Knight avançou, desajeitado, misturando-se ao trânsito do centro de Des Moines ao meio-dia.
— O senhor não vai apreciar os próximos cinco anos — disse Joe.
— Por que não? O Estado de Iowa inteiro está apoiando o que eu acredito. Sabe o que penso de vocês, empregados do senhor Runciter? Pelo que o senhor disse e pelo que aqueles outros disseram, e ouvi por acaso, acho que vocês são agitadores profissionais — Bliss olhou de relance para Joe, com arrogância explícita.
Joe não disse nada. Ele via os prédios antigos de tijolo, madeira e concreto passarem, os carros esquisitos — a maioria, preta — e se perguntava se era o único no grupo que se confrontava com aspectos específicos do mundo de 1939. Em Nova York, disse a si mesmo, será diferente. Este é o Cinturão Bíblico, o meio-oeste isolacionista. Não vamos morar aqui. Ficaremos na Costa Leste, ou no Oeste.
Mas, instintivamente, sentiu que um problema maior para todos eles acabava de se expor. Sabemos demais, deu-se conta, para vivermos de modo confortável neste segmento temporal. Se tivéssemos voltado vinte anos, ou trinta, provavelmente poderíamos fazer a transição psicológica. Poderia até não ser interessante passar mais uma vez pelas atividades extraveiculares do Gemini e pelos primeiros voos da Apollo, mas pelo menos seria possível. Mas neste ponto do tempo...
Ainda estão ouvindo discos de dez polegadas e 78 rotações de "Two Black Crows". E Joe Penner. E "Merter e Marge". A Depressão ainda está acontecendo. Em nosso tempo, mantemos colônias em Marte, em Luna. Estamos aperfeiçoando voos interestelares praticáveis. Essas pessoas não são capazes de lidar com as tempestades de poeira de Oklahoma.
Este é um mundo que vive em termos da oratória de William Jennings Bryan. O julgamento de Scopes, por ensinar a teoria da evolução das espécies, é uma realidade vívida aqui. Não há nenhuma chance de nos adaptarmos ao ponto de vista deles, ao seu ambiente moral, político, sociológico. Para eles, somos agitadores profissionais, mais hostis que os nazistas, provavelmente mais ameaçadores que o Partido Comunista. Somos os agitadores mais perigosos com que este segmento temporal poderia ter de lidar. Bliss está absolutamente certo.
— De onde vocês são? — Bliss perguntava — Não de nenhuma parte dos Estados Unidos, estou correto?
Joe disse:
— Está correto. Somos da Confederação Norte-Americana — Tirou do bolso uma moeda de 25 centavos de Runciter, que entregou a Bliss — À vontade — disse.
Olhando rapidamente para a moeda, Bliss engoliu seco e disse com a voz trêmula:
— O perfil nesta moeda... é o falecido! É o senhor Runciter! — Olhou mais uma vez e empalideceu — E a data... 1990.
— Não gaste tudo de uma vez — disse Joe.
***
Tirando toda essa questão da dinâmica do tempo, e entrelaçada com ela, tem o grande mistério do Ubik. O que raios é Ubik? Essa pergunta nos incomoda desde o título, sendo estimulada por cada início de capítulo, que é epigrafado por uma propaganda de um produto, sempre chamado de Ubik, e sempre com funções diferentes. O leitor chega à conclusão de que Ubik é... tudo. E não está muito errado. O que irá manter a vida (ou meia-vida, ou integridade física) de Joe, protegendo-o dos perigos do novo mundo em que ele se encontra agora, é um spray de Ubik. Muitas vezes ele chega perto de obtê-lo, mas o Ubik também regride. Descobre-se que ele existia há muito tempo, sempre assumindo formas diferentes e com funções diferentes.
A pergunta "o que é Ubik" excedeu os estreitos limites do livro. Gerou especulação do lado de fora também. Quando perguntaram à esposa do autor o que era Ubik, ela disse que achava que representava Deus. Isso parece ser confirmado pela última descrição de Ubik que aparece no livro, como epígrafe do capítulo final:
Eu sou Ubik. Antes que o universo fosse, eu sou. Eu fiz os sóis. Eu fiz os mundos. Eu criei as vidas e os lugares que elas habitam. Eu as transfiro para cá, eu as ponho ali. Elas seguem minhas ordens, fazem o que eu mando. Eu sou o verbo e meu nome nunca é dito, o nome que ninguém conhece. Eu sou chamado de Ubik, mas este não é o meu nome. Eu Sou. Eu Sempre serei.
Essa interpretação oferece uma explicação para o "multiuso" do Ubik, que atende a todas as necessidades, sua presença em todos os lugares, e para o próprio nome do(s) produto(s) que parece(m) advir de "ubiquidade", uma palavra que significa, dentre outros significados relacionados à onipresença, "faculdade divina de estar concomitantemente presente em toda parte".
Em suma, "Ubik" é um livro que, em que pese um tanto confuso e capaz de colocar caraminholas na sua cabeça, é vívido, instigante, envolvente e desperta a reflexão. Como primeira leitura do autor, foi aprovado, e me encorajou a procurar outros, assim que eu tiver tempo.
Aguardem novas resenhas de ficção científica, portanto.
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