Resenha: O Auto da Compadecida — Ariano Suassuna



Quer dizer que, tirando O Cheiro da Rua, é a primeira vez que eu recomendo um livro brasileiro aqui?


Bem, antes tarde do que nunca, não é mesmo? E foi tarde porque eu demorei para ler esse livro, apesar de gostar do Ariano Suassuna (alguém já viu um vídeo com ele? Como não gostar daquele velhinho?!). Na verdade eu comecei pelo filme, que, apesar de ser de 1999, eu ainda nunca tinha assistido.
Como assim você nunca tinha assistido O Auto da Compadecida, Érika? Super passava na Sessão da Tarde!


Essa frase era, basicamente, tudo o que eu sabia do filme, além da cena em que aparece a Compadecida (dã!), que já tinha entrevisto em alguma propaganda, e a existência do personagem Chicó (que eu achava que era o pequenininho). Enfim, anteontem, por motivos, resolvi assistir o filme, gostei e resolvi pegar para ler a peça teatral em que ele é baseado, que li no mesmo dia, por ser bem curtinha.
Gostei também, mas esse foi um dos poucos casos em que eu curti mais a adaptação do que o livro. Bom, talvez se deva ao fato de que é uma peça de teatro, ou seja, é feita para ser adaptada mesmo. E, nas telonas, foi possível mostrar detalhes que a simplicidade da forma de palco não permitiria; situações que no texto original são apenas mencionadas, no filme ganharam cenas próprias, como a infidelidade da esposa do padeiro e o modo como eles tratavam os empregados, além das histórias de Chicó, na forma de ilustração de cordel.
Falando em cordel, essa forma artística típica do nordeste permeia a história inteirinha, como permeia toda a obra do autor, na verdade. Ariano Suassuna é o precursor do Movimento Armorial, um movimento artístico que pretendia criar arte "erudita" a partir de elementos da cultura popular do nordeste. "Armorial" faz referência aos escudos de armas que as famílias tradicionais tinham antigamente; símbolos e brasões que representavam a família. Assim, o movimento busca uma ligação com os símbolos da cultura nordestina, como o cordel, a xilogravura, os ritmos típicos e festejos. Ariano é o representante mais destacado desse movimento, mas ele conta com outros escritores, pintores, e principalmente músicos, como o Quinteto Armorial, que estou escutando enquanto escrevo essa resenha. Vou deixar um álbum deles aqui pra quem quiser acompanhar:

Mas eu falava do cordel. Os motivos da peça O Auto da Compadecida são todos retirados do romanceiro popular nordestino. O autor até mereceu críticas à sua criatividade por causa disso, e a edição do livro que eu li acompanhava um artigo de outra pessoa fazendo a defesa do autor, explicando por que não era plágio. Eu também não chamaria de plágio; o que o autor fez foi cristalizar na peça, na forma de feitos de João Grilo, historinhas anônimas presentes no imaginário popular.
Que João Grilo? Perdão, estou falando e falando aqui e não tratei ainda da história em si. A peça conta os feitos de um sertanejo chamado João Grilo, empregado de um padeiro, sempre acompanhado de seu amigo mentiroso Chicó, que consegue dar nó em pingo d'água com a esperteza, e enrolar as pessoas na lábia, dizendo o que ele sabe que vai agradar os ouvidos delas, e assim predispondo-as a se comportar do modo que ele deseja. Um típico Pedro Malasartes, para quem conhece esse outro personagem.
Dentre os feitos de João Grilo está conseguir convencer um padre (e um sacristão, na versão do livro) a enterrar o cachorro de sua patroa em latim, convencer o bispo a não arranjar problema com isso, vender à sua patroa um gato que "descome" dinheiro, e convencer um chefe cangaceiro devoto de Padre Cícero de que tem uma gaita que ressuscita gente. Apesar de ser comédia, a peça conta com tantos falecimentos quanto uma tragédia de Shakespeare; sem isso não seria possível dar abertura à cena do auto da Compadecida em si, que é quando João Grilo e outros personagens comparecem perante Jesus, o Diabo, e Maria para o julgamento de suas almas segundo seus feitos em vida.
Cabe aqui uma observação, que explica o nome da peça. Auto é, segundo a Wikipedia, "uma composição teatral do subgênero da literatura dramática, surgida na Idade Média, na Espanha, por volta do século XII. De linguagem simples e extensão curta (normalmente, compõe-se de um único ato), os autos, em sua maioria, têm elementos cômicos ou intenção moralizadora". Autos de temática religiosa eram muito famosos na literatura medieval-renascentista de Portugal. Um dos mais famosos é o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, que trabalha a mesma temática: gente morta sendo levada ao céu ou ao paraíso, de acordo com seus feitos em vida, entre outros elementos teológicos.
(Sim, o livro mistura circo, cordel, e teatro medieval religioso. Suassuna bem doidão).
Confesso que a parte do julgamento foi o que menos me agradou na peça e no filme, por motivos de alta discordância teológica. O que gostei ali foram alguns detalhes, sobre o diabo sempre tentando imitar o filho de Deus, ou a própria aparência física que o autor deu a Jesus; fiquei agradavelmente surpresa ao ver que isso não era uma jogada do filme, mas estava presente no texto original, da década de 1950. Achei que o autor foi bem corajoso ao mexer com o tema do racismo já naquela época, e ainda colocá-lo como defeito de seu personagem principal. Se podemos passar a mão na cabeça de João Grilo pelas suas malandragens, que expõem as hipocrisias dos outros e nos fazem rir, o preconceito o torna verdadeiramente problemático, e, ao mesmo tempo, um filho de sua época, emprestando-lhe realidade.
Uma mudança importante, com relação ao comportamento de João Grilo, foi feita na cena do julgamento, na adaptação para as telas de Guel Arraes. Ele se comporta exatamente como no texto original, exceto quando está ele mesmo para ser julgado. Confesso que a versão do filme nos desperta mais simpatia, mas a do livro está mais de acordo com o caráter (inclusive com a intenção de retratar um "tipo") do personagem. Tirando isso, o filme é bastante fiel; o único personagem descartado foi o Sacristão — que, de fato, não tinha muita relevância no enredo original, pois tudo o que ele fazia era basicamente dividir as culpas com o padre. O texto da peça está, letra por letra, na adaptação cinematográfica.

Bem, talvez não seja correto dizer "cinematográfica", já que esta segunda e mais conhecida versão filmada de O Auto da Compadecida era, originalmente, uma minissérie de 4 capítulos, que depois foi condensada num filme bem longo, de duas horas e meia. Longo, mas que não cansa, por ser muito divertido. Talvez pela necessidade de conteúdo para manter uma minissérie, o enredo de outra peça de Ariano Suassuna, "O Santo e a Porca", foi misturado à peça principal, dando uma trama paralela ao filme: o romance de Chicó com Rosinha, a filha do coronel. E a equipe de produção está de parabéns por ter conseguido entrelaçar as histórias tão bem, inserindo até elementos de uma peça de Shakespeare (O Mercador de Veneza), no contrato de Chicó com o coronel, que eu não lembro se estavam presentes em "O Santo e a Porca" (que eu li no ensino fundamental, mas recordo que era muito boa e doida). Nada ficou sem explicação; no máximo houve uma mudança de protagonismo. Chicó, que na peça original é mero apêndice de João Grilo, no filme fica parecendo o personagem principal, apesar da nossa predileção continuar a recair sobre João Grilo.

Os dois são uma tremenda de uma dupla, e muito bem interpretados por Selton Mello e Nachtergaele. Bem, até eu que não entendo nada de cinema e muito menos brasileiro consigo reconhecer um bom elenco quando o vejo: Lima Duarte, Fernanda Montenegro, Denise Fraga, Paulo Goulart, Marcos Nanini... o filme tinha tudo para marcar época, como marcou.
Se você for um dos meus companheiros isolados que nunca assistiu o filme, aqui fica o trailer (perdoe as asnices do narrador), e lá em cima, inaugurando a resenha, uma das cenas mais divertidas (que eu coloquei pela musiquinha, estou viciada naquela musiquinha):

Quem conhece a obra, como sempre, fica aqui convidado a opinar. Quem não conhece, fica convidado a conhecer. E até a próxima resenha ou indicação.

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