Resenha: O bebedor de vinho de palmeira, Amos Tutuola


e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos.


Esse ano, para mim, tem sido de releituras e de experimentar coisas totalmente novas. “O bebedor de vinho de palmeiraentra nessa segunda tendência — eu nunca tinha lido nenhum autor africano, nem o afamado Mia Couto. Quebrei o tabu, e a experiência foi bastante singular.


Descobri “O bebedor” em um curso de tradução; numa das aulas, a professora analisava a tradução desse livro do inglês para o polonês, comentando negativamente as “correçõesque o tradutor polonês fez e que acabaram planificando o texto, que o afastamento eventual da gramática normativa fazia parte de toda a originalidade e peculiaridade do livro do autor nigeriano.



Na tradução para o português, esses desvios não ficaram evidenciados. Ainda assim, o livro permanece original, especialmente tendo em vista as tendências atuais. (Bem, isso talvez se deva ao livro ser da década de 1950). Os defensores do “show, don’t tell” teriam um infarto ao ler a narrativa de Amos Tutuola, que é, todinha, narrada pelo protagonista. Eu fiz, eu disse, eu fuiPouco discurso direto e ainda menos sutileza nas descrições.



Talvez você simplesmente não precise de sutileza nas descrições quando sua história é sobre ir buscar um ex-empregado na Cidade dos Mortos.

Em seguida, tomei a Estrada da Morte, e gastei cerca de oito horas para chegar . E para minha surpresa durante toda a viagem não encontrei ninguém no caminho e isto me fez sentir medo. Quando cheguei à casa dela (Morte), ela não estava , estava em sua horta de inhame que ficava perto dali. Na varanda encontrei um pequeno tambor que toquei para a Morte em sinal de cumprimento. Entretanto ao ouvir o som do tambor ela (Morte) falou: “Este homem tocando tambor está vivo ou morto?” Respondi: “Eu ainda estou vivo e não sou um homem morto”.



O livro começa com o protagonista — seu nome ou é desconhecido, ou se apagou da minha memória — contando que o principal hábito dele na vida, desde pequeno, é beber vinho de palmeira. Seu pai é muito rico, tem uma fazenda de palmeiras para manter-lhe o vício, e eles têm um mestre que, todos os dias, prepara N de vinho fresco para matar a sede do narrador e de seus amigos. Num triste dia, o mestre falece. O narrador tenta contratar um substituto, mas não encontra ninguém à altura. À medida que o estoque de vinho preparado pelo antigo fornecedor vai acabando, os amigos dele também vão desaparecendo. Até que, no ostracismo e na crise de abstinência, o protagonista decide que a única solução para seu problema é trazer de volta o fabricante anterior, e parte em busca dele. um boato de que as almas dos que morrem ficam ainda um tempo na terra antes de ir para seu descanso definitivo, e o nosso herói tem a esperança de alcançar seu vinhateiro antes que essa migração final ocorra.



E assim ele parte. Sabemos muito pouco sobre ele de início; ele solta umas informações aleatórias no decorrer da história. Por exemplo, quando se encontra com um velho que o ameaça argumentando que é um deus, ele responde que ele também é (!!), e explica isso ao leitor de passagem. Esse pequeno detalhe nos é passado por volta da página quinze, pouco antes de ele se transformar em pássaro, com auxílio dos seus amuletos herdados dos antepassados, para espionar o velho e descobrir o que precisa para vencer o desafio que lhe é proposto em troca da informação sobre o paradeiro do vinhateiro.



Na sequência de suas aventuras e peregrinações, ele se envolve em muitas aventuras. Numa delas, encontra uma mulher que acaba por se tornar sua esposa. Ela é a filha de um chefe de tribo, e as circunstâncias em que o narrador se envolve na história da sua futura-esposa são bem peculiares: ele vai salvá-la de um cavaleiro misterioso que ela seguiu na feira porque tinha se apaixonado pela beleza dele. Acontece que o cavaleiro misterioso, que acaba por fazê-la de escrava, na verdade é apenas uma caveira, que comparece à feira com partes do corpo alugadas.





A franqueza do narrador é desconcertante e até perturbadora, às vezes, como quando ele fala que ele e a esposa (e todo mundo da aldeia, provavelmente) gostariam que o bebê-monstro deles — parido pelo dedo inchado da mulher dele — morresse. Em outros momentos, é engraçada, como quando ele senta e chora de inveja da beleza do cavaleiro desconhecido, antes de descobrir que é uma caveira disfarçada.



E a jornada segue, com inúmeras aventuras e longas interrupções, quando obstáculos ou até condições favoráveis seguram o herói e sua companheira em uma ilha, fazenda ou no interior de uma árvore por meses ou anos.



inúmeros Deus ex machina, o que não está mal para um livro que brinca tanto com a fantasia. Os heróis são salvos várias vezes pelos amuletos do narrador ou até por eventos milagrosos mesmo.



É interessante ver como o narrador separa Deus dos deuses. Com os deuses ele se entende nos níveis de igual para igual, ilude-os com seus amuletos, enfim, mas reconhece a interferência de Deus, com sua bondade, numa chuva mandada na hora H para salvá-los da morte, e até em acontecimentos que contrariam a vontade do próprio protagonista, como, inclusive, não ser tão bonito quanto o homem-caveira aparentava ser.



Como é exatamente a jornada que constitui o livro, estragaria a graça da obra falar de cada um dos encontros e percalços do percurso, ou revelar se ele consegue seu objetivo ao chegar à terra dos mortos depois dos 12 anos de peregrinação.



A terra dos mortos, em si, tem regras interessantes — tudo que é certo na terra, é errado , e vice-versa, ao ponto de as pessoas andarem de costas. Por isso, um vivo — que segue as regras dos vivos — não é tolerado por muito tempo, e logo nós acompanhamos o herói em sua jornada de volta, mais abreviada, apesar de também movimentada.



Quando ele volta à sua aldeia de origem, ainda moramos com ele algum tempinho, vendo-o usar as dádivas que ganhou pela façanha de ir à terra, tanto as dádivas materiais, quanto a evolução/involução de sua pessoa e da sua capacidade de se relacionar com os vizinhos.



É a típica coroação da Jornada do Herói. Uma Jornada do Herói nada típica, para olhos acostumados com a fantasia ocidental, mas muito interessante para quem deseja sair da mesmice.

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