Resenha: O bebedor de vinho de palmeira, Amos Tutuola
Esse ano , para mim, tem sido de releituras e de experimentar coisas totalmente novas. “O bebedor de vinho de palmeira ” entra nessa segunda tendência — eu nunca tinha lido nenhum autor africano , nem o afamado Mia Couto. Quebrei o tabu, e a experiência foi bastante singular.
Na tradução para o português , esses desvios não ficaram evidenciados . Ainda assim , o livro permanece original, especialmente tendo em vista as tendências atuais . (Bem , isso talvez se deva ao livro ser da década de 1950). Os defensores do “show, don’t tell” teriam um infarto ao ler a narrativa de Amos Tutuola, que é , todinha , narrada pelo protagonista . Eu fiz , eu disse , eu fui … Pouco discurso direto e ainda menos sutileza nas descrições .
Emseguida ,tomei a Estrada da Morte,e gastei cerca deoito horas parachegar lá . E paraminha surpresa durante toda aviagem não encontrei ninguém nocaminho e isto me fezsentir medo . Quandocheguei à casadela (Morte),ela não estava lá ,estava emsua horta deinhame que ficava perto dali. Navaranda encontrei umpequeno tambor que toquei para a Morte emsinal decumprimento .Entretanto ao ouvir o som dotambor ela (Morte)falou : “Estehomem tocando tambor está vivoou morto ?”Respondi : “Euainda estou vivoe não souum homem morto ”.
O livro começa com o protagonista — seu nome ou é desconhecido , ou se apagou da minha memória — contando que o principal hábito dele na vida , desde pequeno , é beber vinho de palmeira . Seu pai é muito rico , tem uma fazenda de palmeiras só para manter -lhe o vício , e eles têm um mestre que , todos os dias , prepara N de vinho fresco para matar a sede do narrador e de seus amigos. Num triste dia , o mestre falece . O narrador tenta contratar um substituto , mas não encontra ninguém à altura . À medida que o estoque de vinho preparado pelo antigo fornecedor vai acabando , os amigos dele também vão desaparecendo . Até que , no ostracismo e na crise de abstinência , o protagonista decide que a única solução para seu problema é trazer de volta o fabricante anterior, e parte em busca dele . Há um boato de que as almas dos que morrem ficam ainda um tempo na terra antes de ir para seu descanso definitivo , e o nosso herói tem a esperança de alcançar seu vinhateiro antes que essa migração final ocorra .
E assim ele parte . Sabemos muito pouco sobre ele de início ; ele solta umas informações aleatórias no decorrer da história . Por exemplo , quando se encontra com um velho que o ameaça argumentando que é um deus , ele responde que ele também é (!!), e explica isso ao leitor de passagem . Esse pequeno detalhe nos é passado lá por volta da página quinze, pouco antes de ele se transformar em pássaro , com auxílio dos seus amuletos herdados dos antepassados , para espionar o velho e descobrir o que precisa para vencer o desafio que lhe é proposto em troca da informação sobre o paradeiro do vinhateiro .
Na sequência de suas aventuras e peregrinações , ele se envolve em muitas aventuras . Numa delas , encontra uma mulher que acaba por se tornar sua esposa . Ela é a filha de um chefe de tribo , e as circunstâncias em que o narrador se envolve na história da sua futura -esposa são bem peculiares : ele vai salvá -la de um cavaleiro misterioso que ela seguiu na feira porque tinha se apaixonado pela beleza dele . Acontece que o cavaleiro misterioso , que acaba por fazê -la de escrava , na verdade é apenas uma caveira , que comparece à feira com partes do corpo alugadas .
A franqueza do narrador é desconcertante e até perturbadora , às vezes , como quando ele fala que ele e a esposa (e todo mundo da aldeia , provavelmente ) gostariam que o bebê -monstro deles — parido pelo dedo inchado da mulher dele — morresse . Em outros momentos, é engraçada , como quando ele senta e chora de inveja da beleza do cavaleiro desconhecido , antes de descobrir que é uma caveira disfarçada .
E a jornada segue, com inúmeras aventuras e longas interrupções , quando obstáculos ou até condições favoráveis seguram o herói e sua companheira em uma ilha , fazenda ou no interior de uma árvore por meses ou anos .
É interessante ver como o narrador separa Deus dos deuses . Com os deuses ele se entende nos níveis de igual para igual , ilude -os com seus amuletos , enfim , mas reconhece a interferência de Deus, com sua bondade , numa chuva mandada na hora H para salvá -los da morte , e até em acontecimentos que contrariam a vontade do próprio protagonista , como , inclusive, não ser tão bonito quanto o homem -caveira aparentava ser.
Como é exatamente a jornada que constitui o livro , estragaria a graça da obra falar de cada um dos encontros e percalços do percurso , ou revelar se ele consegue seu objetivo ao chegar à terra dos mortos depois dos 12 anos de peregrinação .
A terra dos mortos , em si, tem regras interessantes — tudo que é certo na terra, é errado lá , e vice-versa , ao ponto de as pessoas andarem de costas . Por isso , um vivo — que segue as regras dos vivos — não é tolerado lá por muito tempo, e logo nós acompanhamos o herói em sua jornada de volta , mais abreviada , apesar de também movimentada .
Quando ele volta à sua aldeia de origem , ainda moramos com ele algum tempinho , vendo -o usar as dádivas que ganhou pela façanha de ir à terra, tanto as dádivas materiais , quanto a evolução /involução de sua pessoa e da sua capacidade de se relacionar com os vizinhos .
É a típica coroação da Jornada do Herói. Uma Jornada do Herói nada típica , para olhos acostumados com a fantasia ocidental , mas muito interessante para quem deseja sair da mesmice .
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