Resenha: Quarto de Despejo - Carolina Maria de Jesus
(...)Percebi que chegaram novaspessoas para a favela.Estão maltrapilhas e as facesdesnutridas .Improvisaram umbarracão .Condoí -me dever tantas agruras reservadas aos proletários .Fitei a novacompanheira deinfortunio . Elaolhava a favela,suas lamase suas crianças pauperrimas .Foi o olhar mais tristeque eu já presenciei .Talvez ela não tem mais ilusão .Entregou sua vida aos cuidados da vida .
... Há deexistir alguem que lendo o que eu escrevo dirá...isto é mentira ! Mas, asmiserias são reais .
... Oque eu revolto é contra aganancia dos homens que espremem unsaos outros como se espremesse uma laranja .
O livro é notável em muitos aspectos . O primeiro , e mais evidente , é a descrição do dia -a-dia da favela de uma perspectiva interna. Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) era uma moradora da favela do Canindé, em São Paulo, favela que foi extinta para dar lugar à Marginal Tietê. Ela morou no local na década de 1950, e ganhava seu sustento e o dos três filhos catando papel , ferro , e eventualmente até comida do lixo .
Percebi que noFrigorífico jogam creolina nolixo , parao favelado não catar acarne para comer.
Para mim o mundo emvez deevoluir está retornando à primitividade . Quemnão conhece afome há dedizer : 'Quemescreve isto é louco '. Masquem passafome há dedizer :
—Muito bem , Carolina. Osgêneros alimentícios deve serao alcance detodos .
Comoé horrível ver umfilho comer e perguntar : 'Temmais ?' Estapalavra 'tem mais 'fica oscilando dentro docerebro deuma mãe que olha aspanelas e não tem mais .
Na verdade , se alguma pretensão há , da parte de Carolina, é no sentido de enobrecer um pouco sua narrativa . Encontramos descrições poéticas da natureza , palavras um tanto pomposas como “ablui -me”, enfeitando aqui e ali , quase fora de lugar em um texto de outro modo simples em conteúdo e estilo , próprio de alguém com escolaridade limitada . Ela estudou apenas até a segunda série primária , mas sua professora – segundo o próprio livro relata – conseguiu imbuir nela o amor pela literatura . A leitura e a escrita são o que distraem Carolina um pouco das condições difíceis de sua existência , e servem de apoio à sua alma e à sua dignidade – talvez sirvam -lhe de anestesia , no lugar do alcoolismo , que é a opção de tantos outros favelados , conforme a autora relata com reprovação .
Ela tem boas razões para reprovar o vício :
... Elateve seisfilhos : 3 do Manolo,e três deoutros . Elateve ummenino que podiaestar com 4anos . Mas umdia eles embriagaram ,e brigaram e lutaram dentro de casa. Aluta foi tremenda . Obarraco oscilava . E aspanelas caiam fazendo ruidoso . Naconfusão ,o menino caiu noassoalho e pisaram -lhe emcima . Passadouns dias perceberam que o menino estava todo quebrado .Levaram parao Hospitaldas Clinicas.Engessaram o menino . Mas osossos não ligaram . Omenino morreu .
Agoraela está com duas meninas . Uma dedois anos ,e outrarecém -nascida . Oseu companheiro atual bebe e brigam . E asvezes rolam noassoalho . Quandoeu vejo estas cenas ficopensando nomenino que morreu .
... Tempessoas aqui na favelaque diz que eu quero sermuita coisa porque não bebo pinga . Eu sousozinha . Tenhotrês filhos . Seeu viciar noálcool os meusfilhos não irá respeitar -me.Escrevendo isto estou cometendo uma tolice . Eunão tenho que dar satisfações aninguém . Paraconcluir ,eu não bebo porque não gosto ,e acabou -se . Euprefiro empregar o meu dinheiro emlivros doque noálcool . Sevocê acharque eu estou agindo acertadamente ,peço -te paradizer :—Muito bem , Carolina!
... Euescrevia peças e apresentava aos diretores decircos .Eles respondia -me:
— Épena você ser preta.Esquecendo eles que eu adoro aminha pelenegra ,e o meu cabelo rustico . Eaté acho o cabelo de negromais iducado doque o cabelo debranco . Porque ocabelo depreto onde põe ,fica . Éobediente . Eo cabelo debranco ,é só dar um movimento nacabeça ele já sai dolugar . Éindisciplinado . Seé que existe reencarnações ,eu quero voltar sempre preta.
... Umdia , umbranco disse -me:
— Se ospretos tivessem chegado ao mundo depois dosbrancos ,aí osbrancos podiam protestar com razão . Mas,nem o branco nem o preto conhece asua origem .
Obranco é que diz que é superior. Masque superioridade apresenta o branco ? Se opreto bebe pinga ,o branco bebe .A enfermidade que atinge o preto ,atinge o branco . Se obranco sentefome ,o negrotambém . Anatureza não seleciona ninguém .
Outramulher reclamava que passou numa casae pediu uma esmola . A donada casamandou esperar (...) Amulher continuou dizendo que a donada casasurgiu com umembrulho e deu -lhe . Elanão quis abrir o embrulho perto dascolegas ,com receio deque elas pedissem .Começou pensar .Será umpedaço dequeijo ?Será carne ? Quandoela chegou em casa, aprimeira coisa que fez,foi desfazer o embrulho porque acuriosidade é amiga dasmulheres . Quandodesfez o embrulho viu que eram ratosmortos .
Tempessoas que zombam dosque pedem .
... Quandoexistia asaudosa RuaItaboca ,eu digo saudosa porque vejo tantos homens lamentando a extinção da zona domeritricio . Quandoeu ia lá e via asmulheres mais nogentas e perguntava :
— Ondevocês foramcriadas ?
— No Abrigo deMenores .
—Vocês sabem ler ?
—Não !Porque ?Você é padre?
Euparava a interrogação .Elas não sabiam ler ,nem cuidar de uma casa. Aúnica coisa que elas conhecem minuciosamente e podem lecionar e dar diplomasé pornografia .
Pobresórfãs do Juiz!
A politicagem da política :
E exploração , inclusive do pobre pelo outro pobre :
... Hoje o tal Orlando Lopesveio cobrar aluz . Quercobrar ferro , 25 cruzeiros. Eudisse -lhe que não passou roupas .Ele disse -meque sabe que eu tenho ferro . Quevai ligar o fio dechumbo naluz e se eu ligar o ferro aluz queima e ele não liga mais . Disseque ligou aluz para mime não cobrou deposito .
— Maso deposito já foi abolido desde 1948.Ele disse que pode cobrar deposito porque a Lightdeu -lhe plenos poderes . Queele pode cobrar o que quiser dosfavelados .
[...]
... A Dona Aliceestá tristeporque ela alugou o barracão da Dona Rosa. Eela quer vendero barracão . Quer 4.000,00. Eo seu esposo tem o dinheiro . E a Dona Rosanão lhe cumprimenta . (...) Eununca vi umapessoa tão ambiciosa assim . Aindaque fossesó a ambição ,mas a inveja é asua sombra . Quandoeu ganhei aminha saia vermelha ela ficou furiosa .Dizia :
—Só eu é que não ganho nada!
Agoraela faz outro barracão e alugou o outro que ela residia . Éo que está residindo o senhor Francisco.
Quando os meusfilhos eram menores ,eu deixava eles fechado e saía paracatar papel . Umdia cheguei e encontrei o Joãochorando .Ele disse -me:
— Sabemamãe , a Dona Rosame jogou bosta norosto .
Euacendi o fogo ,esquentei aguae lavei ascrianças .Fiquei horrorisada com amaldade da Dona Rosa. (...) Elasabe que aqui na favelanão pode alugar barracão . Masela aluga . É apior senhoria que eu já vi navida .Porque será que o pobre não tem dó dooutro pobre ?
Tudo,
“Quarto de Despejo ” foi escrito na década de 1950, mas pouca mudança se observa na essência das horríveis condições retratadas . O livro é duro, é forte, não é para qualquer estômago . É, porém , extremamente necessário para despertar para a realidade , e , infelizmente , atemporal.
Na minha opinião , sua leitura deveria ser obrigatória para todo aluno de terceirão , especialmente os de escolas particulares , prestes a escolherem uma profissão e adentrarem , oficialmente , no mundo adulto . Que a leitura os ajude a se humanizar , gerando empatia e desejo de agir para alterar essas condições que , apesar de todo o fatalismo e desespero que provocam , podem ser corrigidas , se as pessoas se dispuserem a rever seus (pré ) conceitos e mudar suas práticas .
Comentários
Postar um comentário