Resenha: Quarto de Despejo - Carolina Maria de Jesus



(...) Percebi que chegaram novas pessoas para a favela. Estão maltrapilhas e as faces desnutridas. Improvisaram um barracão. Condoí-me de ver tantas agruras reservadas aos proletários. Fitei a nova companheira de infortunio. Ela olhava a favela, suas lamas e suas crianças pauperrimas. Foi o olhar mais triste que eu presenciei. Talvez ela não tem mais ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da vida.
... de existir alguem que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as miserias são reais.
...O que eu revolto é contra a ganancia dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja.

Outrora fui leitora ávida de diários, mas fazia muito tempo que não tinha vontade de ler nenhum. Meu interesse por “Quarto de Despejofoi despertado quando alguns conhecidos começaram a ler e compartilhar trechos dele no Facebook. Um amigo depois comentou sobre o livro comigo, chamando a atenção para a sua qualidade, a despeito de se afastar um pouco da gramática normativa. Assim que eu tive a oportunidade, fui à biblioteca e o retirei. Por sorte, ele está (ou esteve recentemente) na lista do vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), então a biblioteca havia comprado alguns exemplares novos, de uma edição relativamente nova (2014) da Editora Ática, com um projeto gráfico lindo (apesar da falta de orelhas), e ilustrações de Vinicius Rossignol Felipe.



 Mesmo que eu tivesse pegado as surradas edições da década de 1970 que havia , porém, o texto em si seria o suficiente para que o livro entrasse na lista dos melhores que li. 

O livro é notável em muitos aspectos. O primeiro, e mais evidente, é a descrição do dia-a-dia da favela de uma perspectiva interna. Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) era uma moradora da favela do Canindé, em São Paulo, favela que foi extinta para dar lugar à Marginal Tietê. Ela morou no local na década de 1950, e ganhava seu sustento e o dos três filhos catando papel, ferro, e eventualmente até comida do lixo

Percebi que no Frigorífico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer.

Então inexiste aqui a romantização inerente a tantos livros ficcionais ou até jornalísticos de autores burgueses de esquerda que idealizam o favelado à semelhança do que os românticos do Século XIX faziam com o índio, criando na sua mente uma figura e tentando encaixar nela pessoas reais e complexas. Muito menos a reprovação estúpida do intelectual (ou não) de direita, meritocrático até a raiz dos cabelos, que chama de self-made (wo)man alguém queconstruiu uma empresado zero’ com os 300 mil reais doados pelo avô”.

Não, o que temos é uma pessoa pobre escrevendo sobre a pobreza, e não porque tenha a pretensão de traçar um retrato definitivo desse fenômeno que aflige boa parte da humanidade, mas sim porque é o que ela vive e conhece

Para mim o mundo em vez de evoluir está retornando à primitividade. Quem não conhece a fome de dizer: 'Quem escreve isto é louco'. Mas quem passa fome de dizer:
Muito bem, Carolina. Os gêneros alimentícios deve ser ao alcance de todos.
Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais?' Esta palavra 'tem mais' fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais.

Na verdade, se alguma pretensão , da parte de Carolina, é no sentido de enobrecer um pouco sua narrativa. Encontramos descrições poéticas da natureza, palavras um tanto pomposas comoablui-me”, enfeitando aqui e ali, quase fora de lugar em um texto de outro modo simples em conteúdo e estilo, próprio de alguém com escolaridade limitada. Ela estudou apenas até a segunda série primária, mas sua professora – segundo o próprio livro relata – conseguiu imbuir nela o amor pela literatura. A leitura e a escrita são o que distraem Carolina um pouco das condições difíceis de sua existência, e servem de apoio à sua alma e à sua dignidade – talvez sirvam-lhe de anestesia, no lugar do alcoolismo, que é a opção de tantos outros favelados, conforme a autora relata com reprovação.

Ela tem boas razões para reprovar o vício:

...Ela teve seis filhos: 3 do Manolo, e três de outros. Ela teve um menino que podia estar com 4 anos. Mas um dia eles embriagaram, e brigaram e lutaram dentro de casa. A luta foi tremenda. O barraco oscilava. E as panelas caiam fazendo ruidoso. Na confusão, o menino caiu no assoalho e pisaram-lhe em cima. Passado uns dias perceberam que o menino estava todo quebrado. Levaram para o Hospital das Clinicas. Engessaram o menino. Mas os ossos não ligaram. O menino morreu.
Agora ela está com duas meninas. Uma de dois anos, e outra recém-nascida. O seu companheiro atual bebe e brigam. E as vezes rolam no assoalho. Quando eu vejo estas cenas fico pensando no menino que morreu.

Casos como esse recheiam o livro. Mesmo assim, seus vizinhos nem sempre compreendem seu posicionamento, e a tratam como elemento estranho:

...Tem pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu sou sozinha. Tenho três filhos. Se eu viciar no álcool os meus filhos não irá respeitar-me. Escrevendo isto estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar satisfações a ninguém. Para concluir, eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool. Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer:
Muito bem, Carolina!
entra outro aspecto que torna o livro tão sincero e autêntico, e por isso tocante: por mais que tente retratar com fidelidade até excessiva tudo o que acontece (por exemplo, começando a maioria das entradas do diário comLevantei-me às horas XX e fui buscar água...”), e de não advogar por uma ou outra ideologia, ela tampouco assume uma pose de imparcialidade – característica dificilmente atingível por um ser humano com qualquer história de vida. Comunica suas ideias pessoais sobre tudo e todos, inclusive as picuinhas e rivalidades de vizinhança, e até transparece alguma xenofobia com relação a grupos como ciganos e nordestinos (baianosounortistas”, como ela fala). Isso faz com que tanto a narradora, como os personagens (i. e., as pessoas mencionadas) apareçam aos nossos olhos como gente de carne e osso, com suas qualidades, muitas falhas, e principalmente seus sofrimentos. É racismo:

...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:
— É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. E até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é dar um movimento na cabeça ele sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.
...Um dia, um branco disse-me:
— Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, os brancos podiam protestar com razão. Mas, nem o branco nem o preto conhece a sua origem.
O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o preto bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.

Crueldade:

Outra mulher reclamava que passou numa casa e pediu uma esmola. A dona da casa mandou esperar (...) A mulher continuou dizendo que a dona da casa surgiu com um embrulho e deu-lhe. Ela não quis abrir o embrulho perto das colegas, com receio de que elas pedissem. Começou pensar. Será um pedaço de queijo? Será carne? Quando ela chegou em casa, a primeira coisa que fez, foi desfazer o embrulho porque a curiosidade é amiga das mulheres. Quando desfez o embrulho viu que eram ratos mortos.
Tem pessoas que zombam dos que pedem.

Descaso por parte do Estado (e suas consequências):

...Quando existia a saudosa Rua Itaboca, eu digo saudosa porque vejo tantos homens lamentando a extinção da zona do meritricio. Quando eu ia e via as mulheres mais nogentas e perguntava:
— Onde vocês foram criadas?
— No Abrigo de Menores.
Vocês sabem ler?
Não! Porque? Você é padre?
Eu parava a interrogação. Elas não sabiam ler, nem cuidar de uma casa. A única coisa que elas conhecem minuciosamente e podem lecionar e dar diplomas é pornografia.
Pobres órfãs do Juiz!
A politicagem da política:




E exploração, inclusive do pobre pelo outro pobre:

...Hoje o tal Orlando Lopes veio cobrar a luz. Quer cobrar ferro, 25 cruzeiros. Eu disse-lhe que não passou roupas. Ele disse-me que sabe que eu tenho ferro. Que vai ligar o fio de chumbo na luz e se eu ligar o ferro a luz queima e ele não liga mais. Disse que ligou a luz para mim e não cobrou deposito.
— Mas o deposito foi abolido desde 1948.
Ele disse que pode cobrar deposito porque a Light deu-lhe plenos poderes. Que ele pode cobrar o que quiser dos favelados.
[...]
...A Dona Alice está triste porque ela alugou o barracão da Dona Rosa. E ela quer vender o barracão. Quer 4.000,00. E o seu esposo tem o dinheiro. E a Dona Rosa não lhe cumprimenta. (...) Eu nunca vi uma pessoa tão ambiciosa assim. Ainda que fosse a ambição, mas a inveja é a sua sombra. Quando eu ganhei a minha saia vermelha ela ficou furiosa. Dizia:
eu é que não ganho nada!
Agora ela faz outro barracão e alugou o outro que ela residia. É o que está residindo o senhor Francisco.
Quando os meus filhos eram menores, eu deixava eles fechado e saía para catar papel. Um dia cheguei e encontrei o João chorando. Ele disse-me:
— Sabe mamãe, a Dona Rosa me jogou bosta no rosto.
Eu acendi o fogo, esquentei agua e lavei as crianças. Fiquei horrorisada com a maldade da Dona Rosa. (...) Ela sabe que aqui na favela não pode alugar barracão. Mas ela aluga. É a pior senhoria que eu vi na vida. Porque será que o pobre não tem do outro pobre?

Tudo, afinal, que as cidades escondem nos seus quartos de despejo – as favelas.

“Quarto de Despejofoi escrito na década de 1950, mas pouca mudança se observa na essência das horríveis condições retratadas. O livro é duro, é forte, não é para qualquer estômago. É, porém, extremamente necessário para despertar para a realidade, e, infelizmente, atemporal. 

Na minha opinião, sua leitura deveria ser obrigatória para todo aluno de terceirão, especialmente os de escolas particulares, prestes a escolherem uma profissão e adentrarem, oficialmente, no mundo adulto. Que a leitura os ajude a se humanizar, gerando empatia e desejo de agir para alterar essas condições que, apesar de todo o fatalismo e desespero que provocam, podem ser corrigidas, se as pessoas se dispuserem a rever seus (pré)conceitos e mudar suas práticas.

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